terça-feira, 29 de julho de 2014

FILOSOFIA EM CENA REABRE SUAS ATIVIDADES

Amanhã, 30/07, o Projeto de Extensão Filosofia em Cena reinicia suas atividades desse semestre e abre as inscrições para todos os interessados no projeto. Não há pré-requisitos nem custo para a participação. 

Para os acadêmicos que precisam de horas complementares, o projeto disponibiliza, ao final do semestre, uma declaração das horas correspondentes à participação no projeto. 

O projeto tem início às 14:30h na Sala 107 do Bloco A da UCDB. 

Para os interessados, fazer sua inscrição amanhã no local. 

Estão todos convidados!

CRONOGRAMA DE ATIVIDADES DO FILOSOFIA EM CENA NO SEMESTRE 2014B

DATA
AÇÃO
30/07
Capacitação Victor
13/08
Capacitação
27/08
Capacitação
10/09
Capacitação Zanatta
24/09
Capacitação
29/09
Evento Interno: (Discussão Pública de Filme na UCDB)
08/10
Capacitação Victor
22/10
Capacitação
28-29/10
Congresso Ensino-Pesquisa-Extensão
?
Evento Externo: RATIO-CINE (Na Fathel)
05/11
Capacitação Zanatta
19/11
Capacitação
08/11 ou 25/10
Evento Externo: (Discussão sobre Filosofia e Cinema na Le Parole)
03/12
Encerramento

sexta-feira, 20 de junho de 2014

COMENTÁRIOS AO FILME: "THE KILLING ROOM"

Manipulador de Cérebros

Dulce Regina dos Santos Pedrossian

            O filme Manipulador de cérebros, suspense, com título original The killing room, sob direção de Jonathan Liebesman, teve seu lançamento em 2010. Emily Reilly (Chloe Sevigny[1]), psicóloga, especialista em Psicologia Militar, foi indicada, ainda que tivesse a opção de desistir, para trabalhar no projeto que tinha como pretensa finalidade explorar os limites da resistência da psique humana sob a supervisão do Dr. Phillips (Peter Stormare). Tal intento foi questionado por Emily Reilly, pois tinha conhecimento de que o governo americano tinha suspendido propostas dessa natureza, o que contradisse Dr. Phillips, ao explicar que o governo dos Estados Unidos podia burlar normas, leis, depois do ocorrido em 11 de setembro de 2001.
Os participantes foram selecionados depois de atenderem ao anúncio, e cada um deles receberia 250 dólares no final independente de terem sido ou não eliminados, de modo que cabia à Emily Reilly traçar um perfil deles. Cada um individualmente deu entrada à sala de experimentação, conduzidos por Dr. Phillips, para serem observados secretamente pela referida psicóloga. Primeiro adentrou no recinto Kerry Islano (Clea Du Vall), casada, seguida por Tony Mazzolla (Shea Whigham), depois Crawfod Haines (Timothy Hutton) - que tinha uma filha - e, por último, Paul Brodie (Nick Cannon). Todos eram portadores de fichas criminais negativas e eram cidadãos americanos, e, logo que entraram na sala, passaram a preencher um formulário de consentimento com perguntas sobre dados pessoais e, também, sobre possíveis situações a serem enfrentadas.
Tony Mazzolla demonstrou afetividade em relação à namorada ao telefonar para ela, bem como preocupação com sua mãe, ao dizer para ela [namorada] que tinha dinheiro guardado para ser entregue à mãe. Crawfod Haines demonstrou que já tinha passado por situações parecidas e auxiliou Kerry Islano a preencher o formulário, e, também, sanou dúvidas de Tony Mazzolla. Por seu lado, Paul Brodie tinha uma atitude de afastamento em relação aos demais, inclusive ficava mais distante deles. Por seu lado, dentre as atribuições de Emily Reilly, tinha que observar atentamente tudo, analisar a situação e ter capacidade para detectar se alguns deles estariam mentindo.
            Ao iniciar a primeira fase da execução do projeto, que deu início com a entrada do Dr. Phillips na sala onde estavam todos os participantes para serem instruídos em relação à forma de participação e, também, tinha o objetivo de recolher os formulários que, segundo ele, não partiu dele esse tipo de atividade, pediu aos participantes que colocassem todos seus objetos pessoais em envelopes, e, conforme questionado, disse que eles ficariam na sala em torno de 8 horas.
A cena do filme que mais me impactou foi quando o médico abruptamente acertou  uma bala com a arma de fogo que estava em sua pasta na cabeça de Kerry Islano, e, em seguida, ausentou-se da sala, trancando todos no recinto. Como explica Cabrera (2006, p. 23), “... os chamados ‘filmes cerebrais’ comovem o espectador precisamente por meio de sua frieza”. Essa passagem provocou reações diversas entre eles - Tony Mazzolla disse que tudo era uma farsa, encenação, que queria ir embora e gritava por socorro. Juntamente com Crawfod Haines, começou a dar chutes na parede. Portanto, o clima era de temor e de insegurança, ainda mais que tinham sido alertados que, se não respondessem as perguntas a serem feitas corretamente, seriam igualmente eliminados. Esse episódio exerceu efeito sobre mim porque não esperava uma normalização de morte por homicídio de modo tão cruelmente arquitetado.
A sala onde estavam trancados era totalmente branca, com paredes, piso e cadeiras brancas, bem como asséptica, tal qual um laboratório experimental. O espaço físico caracterizava-se pela frialdade, poucos móveis, cadeiras grudadas no chão (apontado por um dos participantes como se já tivessem tido problemas anteriores com outras pessoas), sem objetos de decoração, sem a presença de elementos que denotassem vida, como plantas, exceto eles próprios. A sala estava localizada dentro de um “grande laboratório” e, conforme comentário do médico com a psicóloga, o programa funcionava na seleção de civis americanos com vistas a verificar se eles dariam a vida pela América, pela pátria. O clima psicológico depois desse fato era de tensão, porque corriam perigo de vida, isto é, estariam sendo questionados e avaliados, e à medida que quem fosse excluído seria morto. Mas, como comprovado, a protagonista Kerry Islano morreu antes mesmo de ser julgada.
Todos estavam vestidos de roupas de frio escuras, principalmente Kerry Islano e Crawfod Haines que estavam de preto, Tony Mazzolla vestia um casaco que tendia para a cor verde e Paul Brodie  estava com capuz na cabeça.  Considero a cena da morte de Kerry Islano como central, pois, com ela, já deu para comprovar que o projeto não foi planejado de modo transparente, humano, mas de forma desumana e cruel. Em um primeiro momento, vieram algumas indagações: será que isso ocorreu pelo fato de Kerry Islano ser mulher? Mas a psicóloga também era mulher...  Tais indagações foram de certo modo respondidas pelo Dr. Phillips, ao dizer para Emily Reilly que a finalidade do projeto era mais abrangente do que relações de dominação e/ou subordinação. E que, também, era comum às famílias reagirem devido ao desaparecimento de familiares, de modo que ela tinha que se manter calma, com controle. Algo é acertado dizer, a morte de Kerry Islano foi um modo de colocar não somente os participantes em desespero, em tensão, e desconfiarem um do outro, mas também provocou medo em mim na qualidade de expectadora.
            Na fase I do experimento, foi explicado pelo médico que o processo de eliminação resultante do fato de não responderem as perguntas adequadamente, não interferiria no pagamento final. Kerry Islano continuava no chão da “sala da morte” toda ensanguentada, perceberam que a arma utilizada na sua morte ainda continha uma bala. A primeira pergunta era a seguinte: que números os americanos mais escolheriam entre 1 a 33? Quem ficasse mais distante da resposta seria a próxima vítima. A contagem e o controle do tempo eram feitos mediante um dispositivo acoplado à parede. Na sala, escutavam vozes diferentes, de modo que questionaram: “que língua é essa?” “Parecem muçulmanos, não são americanos, são membros da Al-Qaeda; eles alugam casas, mas por que iriam atrás de pessoas comuns?” Paul Brodie percebeu que alguém gravou “socorro” na parede da sala, e notaram, ainda, que tinham mais coisas escritas, como “reze por nós”, “25 de dezembro”, isto é, depreenderam que matavam as pessoas no Natal, de modo que passaram o sangue de Kerry Islano no local para maior identificação das palavras. Enquanto isso, o Dr. Phillips dizia que tudo era cuidadosamente planejado, muito refinado, e se tratava de ciência exata.
            O tempo estava passando, um deles colocou a mão em um dispositivo na parede e ela ficou presa; depois de muitas tentativas conseguiu tirá-la e ficou toda ensanguentada. Para salvaguardar o grupo, Crawfod Haines  e Tony Mazzolla combinaram que todos deveriam falar o mesmo número, de sorte que decidiram que todos falariam o número 7. No momento de darem as respostas, os dois primeiros falaram 7 e Paul Brodie disse 17, o que comprovou, mais uma vez, o afastamento dele no grupo. Em seguida, foram bombardeados por gás lacrimogêneo e transferidos para outra unidade para tratamento. Depois de voltam à “sala da morte”, ainda desmaiados, membro do projeto atirou em Tony Mazzolla. Os outros dois começaram a tossir, perceberam que o colega estava morto, e uma música de Mozart foi colocada como pano de fundo.
Em outro momento, Crawfod Haines começou a bater em Paul Brodie e alegou que ele tinha traído o grupo, ao responder 17 e não 7 como combinado. Em seguida, foi lançado um papel para dentro da sala e que continha a 2ª pergunta: em que posição se encontra os Estados Unidos no ranking internacional do consciente médio de inteligência? Quem ficasse mais longe da resposta seria eliminado. Crawfod Haines ficou desesperado, começou buscar  aberturas na instalação para sair, quebrou uma vidraça no teto da sala, passou sangue no seu corpo, e combinou com Paul Brodie que ele diria 5º, isto é, ao ler na Revista Times, os Estados Unidos estão entre os cinco primeiros dos países, e ele deveria dizer 4º, pois um tinha que sobreviver; começou a recordar com Paul Brodie como era a instalação, os corredores, as escadas, a saída de emergência, a alavanca que deveria ser puxada. Dizia: “o Senhor é o meu pastor, nada me faltará”. Conversavam acerca de que um deles iria sair vivo e que teria que contar tudo acerca dos desgraçados, pois tinham que parar com isso.  E Paul Brodie dizia o tempo todo que não ia conseguir. Crawfod Haines dizia que um deles deveria estar preparado para fugir, e que, quando abrissem à porta, Paul Brodie deveria atirar para matar.
Depois do Dr. Phillips ter dito a Emily Reilly que ela o tinha decepcionado, isto é, tinha capacidade analítica, mas não tinha estômago e nem discernimento, ela disse que estava preparada sim. Disse-lhe que tinha tirado conclusões a respeito do projeto, isto é, que o objetivo era a apoptose, e explicou que se tratava de uma célula disposta a se sacrificar pela maior, o que contestou o médico ao dizer que se tratava de um mecanismo do corpo humano, ou seja, uma célula que se percebia inferior em relação ao sistema.
E enquanto Crawfod Haines e Paul Brodie continuavam a conversar, atiraram inesperadamente em Crawfod Haines, de modo que Paul Brodie saiu correndo, chorando da sala, querendo fugir. Tentou  passar por uma porta, mas foi interceptado por Emily Reilly, e depois encaminhado para a Fase 2 – de doutrinação. A conclusão do Dr. Dr. Phillips era a de que apenas os melhores têm sucesso, e finalizou que um entre vinte americanos comuns tem disposição para se tornar uma arma civil, isto é, um civil disposto a matar pelo seu país, e, com isso, caberiam dar continuidade ao programa.
A teoria crítica da sociedade, decerto, ilumina a minha análise na medida que coloca em destaque a relação indivíduo, cultura e sociedade. O filme em análise e, em especial a cena da morte de Kerry Islano, evidencia a luta pela autoconservação diante de uma situação altamente planejada, isto é, os participantes não tinham escolha a não ser submeterem à crueldade requintada dos empreendedores do projeto. Isso nos reporta a Adorno (2000), quando se referiu ao ocorrido em Auschwitz, pois o ocorrido foi algo administrativamente planejado e corporificado em barbárie mediante opressões e em torturas. Com efeito, ou as perguntas feitas aos participantes do projeto eram meros pretextos, pois a ordem dos que iriam morrer coincidiu com o ingresso na “sala da morte” e já tinha sido traçada a priori, ou seria uma simples coincidência. Tratava-se de um plano regido pela racionalidade da técnica calcada na ciência positivista, de modo que seres humanos eram tratados como se fossem coisas, como se não tivessem sentimentos e alternativas. Como pontua Crochík (2001, p. 90-91):
A ideologia da racionalidade tecnológica traz como paradigma a razão subjetiva ou instrumental, tal como a define Horkheimer [...] e se expressa na ciência positivista[2] e na técnica, que desde o século passado, segundo Marx [...] já contribuíram para a substituição de mão-de-obra viva pelas máquinas. O que rege essa ideologia é a lógica formal ou lógica da identidade, que abstrai de diversos particulares os seus elementos comuns em busca da classificação, ordenação, quantificação etc. A ausência da percepção das contradições e a tendência a sistematizar os fatos são características dessa ideologia [...] disso resulta um hiper-realismo que se alia com a busca pragmática dos resultados, e a percepção imediata passa a se destacar da realidade como a sua verdade. A ênfase na competência e, portanto, na solução dos problemas imediatos, passa a ser a tônica para a adaptação ao mundo atual.

O que se subentende é o amoldamento do indivíduo à realidade estabelecida, ainda que signifique sua dominação interna por conta da ostentação pela competência e por atitudes imediatas que carecem de reflexão e de percepção das contradições sociais. Ainda, a racionalidade tecnologia vem afetando as diversas instâncias da vida do indivíduo, tal como mostrado no filme em que as relações no âmbito do trabalho se tornaram coisificadas, e passaram a utilizar de artefatos tecnológicos de modo desmedido.  No caso do Dr. Phillips e de Emily Reilly, essa última teve um breve momento de resistência, mas, ou o pensamento não se impôs ou ela se sentiu encantada com a adesão ao projeto que carecia de sensibilidade e de finalidades humanas.
O filme coloca, também, em evidência o nacionalismo americano, que, segundo Adorno (2000), aproxima-se do narcisismo das pequenas diferenças de Freud, de modo que somente é possível aos indivíduos reunirem-se no momento que podem projetar sua agressão em outros grupos, no caso, nos americanos considerados comuns. A solução que a película apresentou era a continuidade do projeto alimentado pelos que eram doutrinados, de modo que técnicas de condicionamento de comportamento sobrepujaram possibilidades de resistência. Como explica Adorno (2000, p. 71):
Na incapacidade do pensamento em se impor, já se encontra à espreita o potencial de enquadramento e subordinação a uma autoridade qualquer, do mesmo modo como hoje, concreta e voluntariamente, a gente se curva ao existente. Alguns possivelmente ainda procurarão sacramentar o próprio encantamento como sendo o que o jargão da autenticidade denomina de vínculo autêntico. Enganam-se, porém. Eles não se encontram além do isolamento do espírito autônomo, mas sim aquém da individuação.
           
Todos demonstraram adaptados ao sistema, e, sem dúvida, Emily Reilly, como psicóloga, prescindiu da ética profissional e curvou-se diante das condições dadas. Ainda, segundo Adorno (2000), pesquisas realizadas nos Estados Unidos revelaram que a estrutura da personalidade autoritária não se relaciona tanto assim com os critérios econômico-políticos, mas seria definida muito mais por traços como pensar conforme as dimensões do poder – impotência, paralisia e incapacidade de reagir, comportamento convencional, conformismo, ausência de autorreflexão, enfim, ausência de aptidão à experiência.
Na busca pela compreensão do filme “Manipulador de cérebros”, nos termos de Cabrera (2006), o cinema não elimina a universalidade nem a verdade, porém as redefine na perspectiva da razão logopática. Nesse sentido, o filme como um todo pode ser concebido como um conceito-imagem de manipulação do outro por intermédio de finalidades traçadas a priori. Se os cobaias não tinham condições de resistir diante do aprisionamento que se encontravam e corriam risco de vida, os empreendedores do projeto por intermédio de uma sofisticada frialdade demonstraram o poder do todo em relação ao particular. Mas será que Paul Brodie, ao ser doutrinado, passaria de cobaia a instrutor de programas dessa natureza? Como sinaliza Cabrera (2006), “... personagens podem ser tipificados de uma maneira bastante fixa e constante, de modo que acabam uniformizando extraordinariamente as situações que os caracterizam”. Portanto, podemos inferir que a sociedade demanda a produção de configurações psíquicas para a manutenção do status quo e a questão do desamparo é um fato.

REFERÊNCIAS

ADORNO, Theodor W. Educação e emancipação. 2 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000.

CABRERA, Julio. O cinema pensa: uma introdução à filosofia através dos filmes. Trad. Ryta Vinagre. Rio de Janeiro: Rocco, 2006.

CROCHÍK, José Leon. O ajustamento do pensamento em uma sociedade de alto desenvolvimento tecnológico: o computador no ensino. São Paulo: Universidade de São Paulo - USP, 1990. (Tese de Doutorado.)

__________. Teoria crítica da sociedade e estudos sobre o preconceito. In. Revista Psicologia Política, ano 1, v. 1., n. 1, São Paulo: Sociedade Brasileira de Psicologia Política,  2001, p. 67-99.

MANIPULADOR DE CÉREBROS. Título original The Killing Room. 93 minutos. País de origem: EUA. Dirigido por Jonathan Liebesman


[1] No decorrer do texto, os nomes dos autores estão entre parênteses.
[2] Para maiores esclarecimentos, Crochík (1990) postula que, enquanto a lógica formal age em benefício da realidade estabelecida, a dialética atua em defesa de sua transformação. Por suas próprias características, a lógica formal prima-se pela regra da identidade e pela negação da contradição. Ao anular o conteúdo e o valor, a lógica formal nivela os fenômenos da natureza aos fenômenos humanos, de forma que o domínio da natureza supõe o domínio do homem.


quinta-feira, 19 de junho de 2014

COMUNICAÇÃO REALIZADA EM DISCUSSÃO PÚBLICA DE FILMES NA UCDB SOBRE O FILME: "O PALHAÇO"

O PALHAÇO[1]
Dulce Regina dos Santos Pedrossian

Em primeiro lugar, boa noite a todos(as). É com imensa satisfação que estou aqui representando o grupo que faz parte do Projeto de Extensão “Filosofia em cena”, e minha fala hoje já traz elementos de contribuições de alguns componentes do grupo que estiveram comigo em outro momento assistindo ao filme “O palhaço”.  Como vocês percebem, trata-se de longa-metragem brasileiro, de 2011, produzido por Vania Catani sob a direção de Selton Mello, que também é Benjamin, protagonista principal, juntamente com seu pai, Valdemar, representado pelo ator Paulo José.
Pretendemos comentar cenas do filme que nos possibilitam sua análise. Antes de tudo, Benjamim e Valdemar constituem a dupla de palhaços com os codinomes Pangaré e Puro Sangue, e com a trupe Circo Esperança viajam por pequenas cidades brasileiras e provocam entretenimento aos expectadores. Aliás, o circo representa expectativas de instantes de alegria, de estímulo da imaginação e da fantasia, e, também, mobiliza o público e as autoridades locais, de modo que não é fortuito que quando o grupo circense adentra na pequena cidade de Santa Rita de Ibitipoca, em três carros antigos, trabalhadores de um canavial param para observá-los. Na perspectiva de uma estrutura adequada de circo, sem dúvida, necessita de algumas condições para ser montado, como o terreno precisa ser plano, não inteiramente arenoso, área para acomodar os veículos, as moradias, os banheiros, e de fácil acesso ao público.
Gostaríamos, então, de convidar vocês a embarcar, mais uma vez, no interior da comunidade circense representada nesse filme. Uma passagem expressiva, logo no começo, é quando Benjamim estava se maquiando para entrar em cena e a artista circense Lola (Giselle Mota) entra no acampamento de lona e diz: “Que calor!” e ressalta: “Você devia ter um ventilador”. O símbolo ventilador é usado em diversas partes do filme, inclusive na logomarca da produção.  E, antes dos espetáculos, devido à possibilidade ou não de uma boa audiência, habitualmente um dos componentes da trupe relata para Benjamim a quantidade de pessoas no espetáculo, o nome do prefeito e de sua mulher, e, também o nome do maluco da cidade. No primeiro espetáculo, por exemplo, têm 57 pessoas, o prefeito chama-se Romualdo, usa óculos, sua mulher tem o nome de Nancy, é cabeleireira, e o maluco da cidade chama-se Pinga. Em outro, 33 pessoas, prefeito Silas, mulher Quitéria, maluco Jerônimo, e assim vai.
A abertura do primeiro ato provoca no espectador desejo de entrar no espírito circense, de consumir, nos intervalos, paçoca, geladinho, enternecer-se com as músicas dos Irmãos Lorotta (Álamo Facó e Hossen Minussi) que são “protegidos” por uma placa com os dizeres: “Não atire nos músicos”.  Depois de um dos artistas do circo levantar peso, entram em cena os palhaços Puro Sangue e Pangaré, as pessoas acham graça do espetáculo e, também, Lola dança com uma espada nas mãos. A menina Guilhermina, interpretada por Larissa Manoela, que também faz parte do grupo, observa atentamente atrás dos bastidores. Aliás, ela sempre está assistindo os entretenimentos, na realidade é a testemunha ocular ao longo do filme; percebe que Lola guarda dinheiro escondido do Sr. Valdemar, quando o ajudava a fazer pagamentos e/ou dividir o dinheiro decorrente das apresentações aos componentes do circo; presta atenção em Benjamim, quando percebe que está preocupado; sua mãe protege-a quando sente que ela está pensativa e inclusive lhe diz da importância de orar para São Filomeno, santo protetor dos músicos, dos comediantes e dos palhaços. 
A preocupação ronda o dia a dia de Benjamin, de modo que o pai lhe pergunta: “Resolveu as coisas?”. Benjamim depara-se com artista circense que quer pintar cabelo de louro para dar “sacudidas nas coisas” e dizer que é ‘russo’; outro querendo remédio porque está com dor de cabeça; a senhora Zaira (Teuda Bara) querendo um sutiã novo, porque o dela rasgou em cena (algo que vai ser preocupação de Benjamim que pergunta à esposa do prefeito e, depois, à atriz convidada Fabiana Karla se elas tinham sutiã velho para lhe dar); os Irmãos Lorotta solicitam-lhe acerto de conta. Pensativo, Benjamim desabafa com a senhora Zaira:  “Essa correria. Espero as coisas acalmarem, daí resolvo tudo”, ao que a senhora lhe responde: “Você está precisando dormir, Benja”.
Benjamim somente tem visões de ventilador à sua frente, e, de repente, é abordado por uma das espectadoras do circo, que gostou muito do espetáculo, que se chama Ana e que trabalha em Aldo Autopeças, em Passos, caso um dia ele resolva ir lá. O prefeito também se aproxima dele e lhe pergunta a respeito de sua graça. Ele responde que anda meio sem graça, mas que o nome dele é Benjamim. Convida-o, juntamente, com o restante do grupo, para um jantar na casa dele. Lá um ventilador faz-se, de fato, presente. O prefeito pergunta a Benjamim, se seu filho, que nasceu para ser artista, podia participar de um ato no circo recitando um poema feito por ele mesmo. Mas, para surpresa de todos, durante o espetáculo, devido à falta de experiência e do nervosismo do menino, fica atrapalhado e diz que é filho do prefeito, quando indagado acerca do seu papel. A questão da identidade aparece, aliás, o tema central do filme é a busca da identidade.
Compreendemos, também, que a troca de favores está presente no filme. O prefeito com a mulher não pagam ingresso, mas convidam a comunidade circense para jantar na casa deles, bem como Nancy, cabeleireira, atende componentes do grupo no seu salão de beleza por cortesia.  Do mesmo modo, o suborno, pois, no momento que o fiscal comprova que o circo não tinha alvará de funcionamento, indaga a Benjamim se ele pode arrumar alguns ingressos; quando vão à delegacia para prestarem depoimento, o delegado Justo, que estava mais preocupado com seu gato Lincoln do que com a mulher Cleide, solicita dinheiro por conta da pretensa recompensa. Ainda, a tapeação quando o rapaz de bicicleta vende um mapa da Venezuela para orientá-los na procura da ‘Ofissina’ dos “irmãos gêmeos” Papagaio – Deto e Beto – no conserto do carro. Em um primeiro momento, chama-nos a atenção o fato de os irmãos viverem na mesma casa e não se falaram por mais de 15 anos, todavia, Oliveira (2014, p. 02), em Somos todos “palhaço” do circo que construímos, traz algo que não tínhamos percebido:
A solidão é apresentada em uma cena de comédia que pode passar despercebido, na oficina dos “irmãos gêmeos” Beto e Deco, não é difícil de ver o que o retiro fez com eles, não sabemos quem criou quem, pois perdidos na imensidão da distância e na solidão do sertão, a única saída foi criar um amigo imaginário para assim superar o isolamento ali existente.
Percebemos, também, serem os problemas de droga e de cachaça recorrentes na região. Não por acaso, os espetáculos abordam questões da existência humana, como Puro Sangue no picadeiro advertir sobre os malefícios da cachaça, dizer sobre a existência de Deus. Ainda, o filme é um bom meio para descrever os valores culturais, a exemplo do sonho que um deles tem com a cabra e que lhe provoca sofrimento dado o conflito que se estabelece, e comprovado pela compulsão à repetição do relato; a cultura asséptica no fato de Chico Mourão indagar a Benjamim se ele era seu amigo, pois alguém havia lhe dito que não cheirava bem; a questão da infidelidade mostrada no fato de um deles que fazia parte da trupe mexer com a mulher do outro no Bar do Tim. Como esclarece Horkheimer (2000, p. 119) em Eclipse da razão:
[...] se não existe outra norma além do status quo, se toda a esperança de felicidade que a razão pode oferecer é preservar o existente tal como ele é e mesmo aumentar suas pressões, o impulso mimético jamais pode ser verdadeiramente superado. Os homens retornam a esse impulso de uma forma regressiva e distorcida (GRIFO DO AUTOR).

Essa citação evidencia nossa limitação diante da realidade, conduzindo-nos a pensar sobre o nosso cotidiano, isto é, não se trata de algo fácil termos atitudes pensadas e é muito mais fácil agirmos por meio de reflexos, ainda mais quando necessitamos de esclarecimento quer vivamos em grandes centros ou em pequenas cidades.
Tendo em vista o caráter da cultura nômade, itinerante – pessoas que não têm uma habitação fixa, que vivem constantemente mudando de lugar, o que demanda pensarem no “outro lugar” –, outra passagem significativa foi quando, no trajeto para outra cidade, pararam em um Recanto com bar. Enquanto Benjamim observa Guilhermina brincando de jogar bola com os pais, Valdemar conversa com um rapaz (Jackson Antunes) que toca violão, que lhe pergunta se ele era o dono do circo. Ele disse que é bom ser dono, que tinha uma fábrica de tecido com seu pai, mas que venderam a loja para cultivarem arroz; como não entendiam disso, perderam tudo. Conclui que hoje está melhor e que “cada um deve fazer o que sabe fazer. O gato bebe leite, o rato come queijo e ele toca seu trabalho”. Depois disso, Sr. Valdemar fica pensativo e olha para o filho. Algo que não pode ser desconsiderado é que a transmissão do conhecimento de pai para filho na comunidade circense acontece e intervém na relação de trabalho que se institui.
Benjamim demonstra distração em vários momentos, ao montar o circo, não presta atenção no sentido do vento, bem como insatisfação, ao dizer ao pai quando toca acordeão e ele violão: “Pai, acho que não estou dando conta”. Decide comprar um ventilador, mas para parcelar, necessita ter RG, CIC, comprovante de residência, de modo que não pode adquirir o produto.
Em Montes Claros, a questão de “não vai enterrar o morto?” aparece. Sousa (2013), em sua dissertação de mestrado denominada Retrato de picadeiros: memórias de uma trajetória de circo na Amazônia paraense, esclarece que no Circo a verbalização do pensamento, da palavra, implica poder.  Palavras são para o indivíduo circense instrumentos de comunicação pelos quais se revela herança, identidade e escolha de vida, de modo que reconta um trecho do referido filme:
A pergunta é: Que negócio é esse de enterrar defunto?”– questiona bastante chateado o delegado Justo, interpretado por Moacyr Franco, em uma das mais recentes produções de Selton Mello, O Palhaço. “Não é defunto não  doutor. É coisa de circo. É o morto que nós fala”– diz João Lorota (Álamo Facó). “É isso doutor”– reforça Chico Lorota (Hossen Minussi) que emenda a fala explicando: “É quando a gente encontra um terreno arenoso, é suspeito, né. Aí a gente tem que cravar umas estaca pra poder prender a  lona”. “E essas estacas nós chama de mortos...”, contribui prontamente João Lorota quem conclui com cara de quem jura inocência dizendo: “é isso...” (O Palhaço, Selton Melo, 2011, apud SOUSA, 2013, p. 39).

Nesse sentido, depreendemos que, o que segura, paralisa, é a morte; o ventilador é a vida, que movimenta o que está sem circulação. Sousa (2013) acrescenta que as estacas possuem tal nome porque permanecem enterradas de modo profundo no solo onde acampa o circo. O não travamento das cordas, que junto com os moitões – roldanas de ferro com ganchos – auxiliam a montagem da estrutura do circo, provoca o desabamento da lona em caso de grande agitação ou tempestade. Por isso é que o pai de Benjamim lhe adverte por conta de sua displicência, pois, quando é perguntado se não vai enterrar o morto naquele suspeito terreno, responde que entendeu que não necessitava, de modo que Sr. Valdemar reage com indignação e solicita que seja refeito o trabalho. Os trabalhadores, ao reclamarem no Bar do Tim, a viva voz, que aquele morto tinha sido enterrado entre todos, foram mal interpretados e tiveram que prestar contas do defunto circense ao referido delegado.
Ao conversar com a personagem interpretada por Fabiana Karla enquanto os outros estavam no bar, Benjamim indagou-lhe onde ficava Passos e, ao lhe perguntar o que ele fazia, ele lhe disse que ele era Palhaço, que fazia as pessoas rirem e indaga: “mas quem vai me fazer rir?” Compreedemos ser importante tal cena, pois, mais à frente, Benjamim vai estar reunido com seu chefe (Jorge Loredo) e colegas de trabalho, todos escutando e rindo das piadas, o que lhe propicia pensar acerca de sua identidade e do seu papel no circo. Pois, como afirma Crochík (2006, p. 66), em Preconceito, indivíduo e cultura: a identidade “[...] é a síntese daquilo que se repete e daquilo que luta contra a repetição, ou daquilo que tenta não se repetir e o que luta pela repetição”. Isto é:
[...] a identidade individual é dada por elementos visíveis e invisíveis, constantes e imprevisíveis, sociais e individuais, manifestos e ocultos, universais e particulares, permanente e em mutação. Não considerar os aspectos permanentes, embora não imutáveis, é desconsiderar a memória, a experiência acumulada refletida ou não, ou seja, o que o indivíduo reconhece como próprio e particular. Ele não só é essas características, como as possui, são suas propriedades privadas e, é claro, foram produzidas ou adquiridas por doação social: não o sexo, a classe social, a cor da pele, mas as considerações e os papéis atribuídos a ele. Não considerar a possibilidade de mudança, ou aquilo que lhe é oculto, por sua vez, é julgar que o indivíduo seja incapaz de ser outra coisa, além daquilo que se espera dele (CROCHÍK, 2006, p. 66).

Portanto, existem aspectos da relação do indivíduo com a cultura e com a sociedade que fogem do nosso controle, mas por meio da experiência, do conhecimento e da reflexão, é possível mudarmos de atitudes. Daí ser explicável o duplo movimento de Banjamim, querer mudar e querer ficar.
Outra parte do filme que, no nosso entendimento, provocou compreensão logopática, isto é, afetiva e racional ao mesmo tempo, nos termos de Cabrera (2006), é quando, depois de uma apresentação, em que Pangaré não consegue devidamente atuar, seu pai, Sr. Valdemar, observa o filho ir para o acampamento. O pai está triste, pensativo, tira o nariz de palhaço e se dirige a Benjamim que está deitado e lhe diz: “Filho, na vida a gente tem que fazer o que sabe fazer. O gato bebe leite, o rato come queijo, eu sou palhaço. E você?”. Com efeito, Sr. Valdemar introjetou a experiência do personagem representado por Jackson Antunes como algo bom e, por conseguinte, sua percepção do mundo também sofreu modificações.
Não é fortuito que Benjamim decide seguir seu próprio caminho, na despedida, todos demonstram tristeza, mas não dizem nada; Guilhermina permanece, acompanhando-o com o olhar, com as duas mãos olhando no vidro do carro. Assim, nessa passagem, como em outras, percebemos o encadeamento de relações afetivas, de crises e de superações presentes na comunidade circense.  Sr. Valdemar, junto com Lola, no carro, diz a ela que vai precisar do dinheiro. Ela pergunta: “que dinheiro?”. Ela decide entregar-lhe o dinheiro que tinha retirado escondido dele, mas, antes de ela seguir seu próprio caminho, ele, com sua peculiar sensibilidade, lhe devolve o dinheiro e diz que ela vai precisar. Guilhermina observa o ato.
De carona em uma moto, Benjamim chega a Passos, dirige-se para um hotel, observa cenas como casal se beijando, homem lendo jornal, que eram cenas parecidas como as que ocorriam quando estava no circo, o que evidencia que a comunidade circense, com seu caráter itinerante, faz parte de uma cultura abrangente. Ou, o mundo fora do circo passou a ser visto por Benjamim como verdadeiramente é. Vai à procura de emprego, mas não pode se candidatar a ser atendente porque não tem RG, CPF e comprovante de residência, de modo que providencia a identidade mediante sua certidão de nascimento. Em outro momento, ele dirige-se até Aldo Autopeças e, para sua decepção, Ana, a moça que tinha conhecido em Santa Rita de Ibitipoca vai se casar com o próprio Aldo (Danton Mello), proprietário. Compra, então, o desejado ventilador. De volta ao circo, com expressão de contentamento, anda de ônibus, na carroceria de um caminhão, e ao flertar com uma garota, reconhece, mais uma vez, que o que sabe fazer mesmo é ser palhaço.
Outra cena impactante foi o momento que Puro Sangue está contracenado com a senhora Zaira, que diz: “Desgraçado, esse menino é filho seu”. Ele responde: “Que papai coisa alguma, quem tem filho grande é elefante”. Como assistimos, Benjamim aparece e diz: “O gato bebe leite, o rato come queijo e eu sou palhaço”. Puro Sangue e/ou o pai, e Pangaré e/ou o filho, tocam-se no nariz e não precisam de palavras naquele momento. Como afirma Sousa (2013, p. 175), “[...] quem bebeu água da lona nunca mais esquece!”; trata-se de um ditado comum entre os circenses para ilustrar sobre a paixão entranhada nos artistas de circo de lona que dificilmente se habituam a outra vida que não seja a do circo.
Podemos dizer que o filme emprega simbolismos, gestos, olhares, silêncios, e, por meio deles, o processo da identidade vai sendo construído e desvelado, a exemplo de Lola, ao comer maçã e ser cortejada, e passar esmalte nas unhas; Guilhermina com bonecas, vestida de princesa, com uma sombrinha; a infidelidade em mensagens subliminares como no quadro do “chifrudo” (na casa do prefeito); Benjamin, ao tentar se encontrar, diante do espelho, e a piscadela que ele deu à moça da plateia. Também, a participação de personagens como Jorge Loredo e Moacyr Franco, entre outros, e a música de “dor de cotovelo” no final.
O circo representa a separação entre a vida real e a vida fictícia, considerando os papéis como uma forma de comunicação, de criação de laços sociais. Mas, diante da própria existência, da condição humana e das experiências de seu cotidiano, como é difícil imaginar e representar – e a representação é mimesis, imitação – para uma plateia de carne e osso, tal como expressa Benjamim: “Acende a luz para ver essa gente bonita; apaga rápido”; ao mesmo tempo, como é bom sonhar e representar. Como refletimos em outro trabalho:
O novo não tem entrada - as coisas parecem repetir-se, não têm elementos novos, o que fortalece a realidade estabelecida, pois a tônica recai na mesmice diante da impotência do indivíduo frente à totalidade. O indivíduo tende, com isso, a submeter-se ao mais arcaico dos meios biológicos de subsistência - o mimetismo. É fato irrefutável que o processo de aprendizagem da criança vai desde o “impulso mimético” até a apreensão da “imitação consciente” (PEDROSSIAN, 2008, p. 43).

              Assim, podemos aproximar os conceitos de mimese e de dor, de modo que a simples repetição das cenas provavelmente não provoca contentamento nos artistas circenses.  Ainda que haja piadas no filme, a essência não está no riso, mas no humor. Como pontua Freud (1974), no escrito O humor, de 1927, o humor tem não somente algo de libertador, como também possui algo de elevação e de grandeza na medida que o ego se abdica de sofrer, de ser angustiado pelas provocações ou traumas da realidade. Do mesmo modo que o humor, para Horkheimer e Adorno (1985, p. 78), na Dialética do esclarecimento, escrito de 1947: “Se o riso é até hoje o sinal da violência, o prorrompimento de uma natureza cega e insensível, ele não deixa de conter o elemento contrário: com o riso, a natureza cega toma consciência de si mesma enquanto tal e se priva assim da violência destruidora”, e, assim, sinalizam para além do endurecimento interior e da servidão.
Outro conceito suscitado no filme é o da renovação, da esperança. Se Lola partiu para seguir outro caminho que não mais do circo, Guilhermina – a menina protegida por São Filomeno – cresceu e passou a representar a promessa, e, como pontua Adorno (1993, p. 85) em Minima moralia, escrito de 1947:
[...] a esperança - na medida em que se arranca da realidade ao negá-la - é a única forma na qual a verdade se manifesta. Sem esperança seria quase impossível pensar a ideia da verdade, e a inverdade capital é fazer passar por verdade a existência reconhecida como má, simplesmente porque ela foi reconhecida.

Não por acaso, o ventilador carregado de significados e presente em toda a trama evidencia que somos seres marcados pela falta, pelo desamparo e, ainda, contém os bons ventos da renovação. Como afirma Sousa (2013, p. 50):
Para Michel Maffesoli [em El Nomadismo: vagabundeos iniciáticos] este vento é “o espírito que sopra onde quer”, e em seu caminho atravessa fronteiras, é fecundado pelas diversas influências com as quais se cruza e fecunda por sua vez aqueles que se entregam ao dinamismo do seu impulso”, e ainda, dirá que “violento ou sussurrante, o vento é a metáfora por excelência da irrefreável circulação. Fonte de respiração e inspiração. Leva consigo os germes fecundadores”. Dando-nos em poucas palavras a garantia da renovação constante por intermédio do movimento. E - não só dela, senão também da inovação pela gestação fruto de cruzamentos, encontros e trocas; da inspiração que impulsiona novos caminhos e da vivacidade capaz de resistir a tudo o que tende a ficar intumescido. A intensa circulação que Maffesoli trata é a cultura nômade, que assim como o vento não repara em barreiras ilusórias construídas para sustentar o estável, o social-estável ou ainda o establishment. Antes (se necessário) transforma-se em tormenta que arrasta tudo a seu passo e chega a explodir impérios que são aparentemente sólidos. A cultura nômade desestabiliza. Independente de camadas sociais, obriga todos a pensar no “outro lugar”.

O caráter de ser nômade implica também mudanças, ainda que as coisas não modifiquem; como já dizemos, nos diversos lugares aonde o circo vai, há repetição de perguntas feitas que se relacionam com a autoconservação da comunidade circense, e, igualmente, as cenas já observadas por Benjamim no circo repetem-se quando ele vai embora, de sorte que isso pode ser explicado pela crítica dos frankfurtianos no mundo atual: onde quer que vamos, tudo é igual; o ventilador talvez permita o movimento, mas ele é objeto construído pelos homens e talvez os traga para o mesmo lugar, ou seja, seu movimento pode também ser ilusório.
Mas, como sinaliza Marcuse (1977, p. 39) em A dimensão estética: “A arte não pode mudar o mundo, mas pode contribuir para a mudança da consciência e impulsos dos homens e mulheres, que poderiam mudar o mundo”, isto é, possibilita uma compreensão da realidade.
Muito obrigada.

REFERÊNCIAS
ADORNO, Theodor W.  Minima moralia: reflexões a partir da vida danificada (1947). Trad. Luiz Eduardo Bicca. 2 ed. São Paulo: Ática, 1993.

CABRERA, Julio. O cinema pensa: uma introdução à filosofia através dos filmes. Trad. Ryta Vinagre. Rio de Janeiro: Rocco, 2006.

CROCHÍK, José Leon. Preconceito, indivíduo e cultura. 3 ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2006.

FREUD, Sigmund. O humor (1927). In. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1974, p. 187-194.

HORKHEIMER, Max. e ADORNO, Theodor W.  Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos (1947). Trad. Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.

HORKHEIMER, Max. Eclipse da razão (1946). São Paulo: Centauro, 2000.

MARCUSE, Herbert. A dimensão estética (1977). Trad. Maria Elisabete Costa. Revisor da tradução: João Tiago Proença. Portugal: Edições 70, 1977.

MELO, Selton. Palhaço. Duração: 90min. Brasil: Imagem Filmes, 2011.

OLIVEIRA, Sidnei. Somos todos “palhaço” do circo que construímos. O palhaço - Selton Melo. A representação da felicidade que não alcançamos. Disponível em: files.violaoliveira.com/200000864-d3da8d4d48/O%20Palhaço.pdf. Acesso em 01 junho 2014.

PEDROSSIAN, Dulce Regina dos Santos. A racionalidade tecnológica, o narcisismo e a melancolia. São Paulo: Roca, 2008.
SOUSA, María Virginia Abasto de.  Retrato de picadeiros: memórias de uma trajetória de circo na Amazônia paraense.  Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal do Pará, Instituto de  Ciências da Arte, Programa de Pós-graduação em Artes, 2013.







[1] Trabalho apresentado como atividade do Projeto de Extensão Filosofia em Cena/Universidade Católica Dom Bosco – UCDB, em 04.06.2014.

quarta-feira, 28 de maio de 2014

EVENTO FILOSOFIA EM CENA




APRESENTA:



DATA: 04/06
LOCAL: ANFITEATRO DA BIBLIOTECA DA UCDB
HORÁRIO: 19:30
APÓS O FILME, HAVERÁ UMA DISCUSSÃO SOBRE O MESMO

TODOS ESTÃO CONVIDADOS!

terça-feira, 13 de maio de 2014

SÍNTESE DOS DOIS PRIMEIROS CAPÍTULOS DE "O CINEMA PENSA"

CABRERA, Julio. O cinema pensa. Uma introdução à filosofia através dos filmes. Rio de Janeiro: Rocco, 2006, pp.15-48.

IDEIAS CENTRAIS

CAP I – PENSADORES PÁTICOS E PENSADORES APÁTICOS DIANTE DO SURGIMENTO DO CINEMA

F Surgimento de linhas de pensamento que mudaram o modo de compreensão da racionalidade humana: influência do cinema sobre a filosofia.
F Correntes: Schopenhauer, Nietzsche e Heidegger.
F Mudança: problematizam a racionalidade puramente lógica (logos) como o único modo de acesso a realidade, de modo a incluir, no processo de compreensão do real, um elemento afetivo (ou pático).
F Os “filósofos páticos” ou “cinematográficos": não se limitaram a tematizar o componente afetivo, mas o incluíram na racionalidade como um elemento essencial de acesso ao mundo.
F O pathos, juntamente com o logos, passa a ser condição de possibilidade para o conhecimento.
F Há, portanto, um elemento experiencial (não empírico) na apropriação de um problema filosófico que torna sensível os problemas filosóficos.
F Cabrera questiona se o modo tradicional de fazer filosofia (o modo da literatura) seria o único no que tange à produção filosófica e se questiona se não há outros modos, como a imagem.
F Parece não haver incompatibilidade entre o modo de fazer filosofia e uma apresentação imagética de questões filosófica, pois o que caracteriza o saber filosófico é sua radicalidade no questionar e seu caráter abrangente de suas considerações.
F O cinema: conseguiria dar sentido cognitivo ao que os filósofos disseram em forma de literatura numa linguagem “logopática”, ou seja, os aspectos emocionais (experienciais) não desalojam o racional, mas redefine-o.
F Cabrera tenta fazer um paralelo entre a linguagem particular do cinema e o conceito de Serenidade de Heidegger, ou seja, uma forma de captar o mundo que promove como a poesia uma atitude fundamental diante do mundo.
F A um correlato entre cinema e filosofia no aspecto que ambos são conceitos em aberto, ou seja, há uma necessidade constante e dinâmica de redefinição.  

CAP II – CONCEITOS-IMAGEM

F Para os “filósofos cinematográficos” ou “páticos”:
a) o modo de compreensão do real não se dá numa linguagem logicamente articulada, mas a partir de uma linguagem logopática, ou seja, devem ser ditas numa linguagem que apresente-o sensivelmente.
b) a linguagem logopática provoca algum tipo de impacto em quem entra em contato com ela.
c) o impacto sensivelmente apresentado pela linguagem logopática oferecem certas realidades que possuem pretensões de verdade universal, não caindo em meras impressões psicológicas. Ao contrário, dizem de experiências existenciais fundamentais ligadas à condição humana.
F Assim o cinema visto sob a perspectiva da linguagem logopática se dá em “conceitos-imagem”.
F1. Um conceito-imagem: é instaurado e funciona no contexto de uma experiência que é preciso ter para que se possa entender e utilizar esse conceito. É um conceito oriundo de um certo tipo de experiência a qual deixa-se afetar pela vivência de algo.
F 2. Um conceito-imagem: é produzido em alguém por meio de um impacto emocional que revela algo sobre o mundo, o ser humano, a natureza, etc.
F 3. Um conceito-imagem: diz de algo com pretensão de verdade e universalidade.
F 4. Um conceito-imagem: pode ser identificado em partes ou no filme como um todo, contudo necessitam ser instalados em um desenvolvimento temporal e, por isso, não são pontuais.
F 5. Um conceito-imagem: pode ser literal às imagens mostradas no filme ou desenvolvidos mediante abstração das imagens.
F 6. Um conceito-imagem: não são categorias estéticas nem possui a finalidade de classificar em “bom” ou “ruim”, “belo” ou “feio”, etc.
F 7. Um conceito-imagem: não é exclusivo do cinema, mas podem ser encontrados na literatura, sobretudo, nos filósofos páticos. O cinema apenas potencializa as possibilidades da literatura.

F 8, Um conceito-imagem: propõe soluções lógicas, epistêmicas e moralmente abertas e problemáticas.