Dulce Regina dos Santos
Pedrossian
Em primeiro lugar, boa noite a todos(as). É com imensa satisfação que
estou aqui representando o grupo que faz parte
do Projeto de Extensão “Filosofia em cena”, e minha fala hoje já traz elementos
de contribuições de alguns componentes do grupo que estiveram comigo em outro
momento assistindo ao filme “O palhaço”. Como vocês percebem, trata-se de longa-metragem
brasileiro, de 2011, produzido por Vania Catani sob a direção de Selton Mello,
que também é Benjamin, protagonista principal, juntamente com seu pai,
Valdemar, representado pelo ator Paulo José.
Pretendemos comentar
cenas do filme que nos possibilitam sua análise. Antes de tudo, Benjamim e
Valdemar constituem a dupla de palhaços com os codinomes Pangaré e Puro Sangue, e
com a trupe Circo Esperança viajam
por pequenas cidades brasileiras e provocam entretenimento aos expectadores.
Aliás, o circo representa expectativas de instantes de alegria, de estímulo da
imaginação e da fantasia, e, também, mobiliza o público e as autoridades locais,
de modo que não é fortuito que quando o grupo circense adentra na pequena
cidade de Santa Rita de Ibitipoca,
em três carros antigos, trabalhadores
de um canavial param para observá-los. Na perspectiva de uma estrutura adequada
de circo, sem dúvida, necessita de algumas condições para ser montado, como o
terreno precisa ser plano, não inteiramente arenoso, área para acomodar os veículos,
as moradias, os banheiros, e de fácil acesso ao público.
Gostaríamos,
então, de convidar vocês a embarcar, mais uma vez, no interior da comunidade
circense representada nesse filme. Uma passagem expressiva, logo no começo, é quando
Benjamim estava se maquiando para entrar em cena e a artista circense Lola (Giselle
Mota) entra no acampamento de lona e diz: “Que calor!” e ressalta: “Você devia
ter um ventilador”. O símbolo ventilador é usado em diversas partes do filme,
inclusive na logomarca da produção. E, antes
dos espetáculos, devido à possibilidade ou não de uma boa audiência, habitualmente
um dos componentes da trupe relata para Benjamim a quantidade de pessoas no
espetáculo, o nome do prefeito e de sua mulher, e, também o nome do maluco da cidade. No primeiro espetáculo,
por exemplo, têm 57 pessoas, o prefeito chama-se Romualdo, usa óculos, sua
mulher tem o nome de Nancy, é cabeleireira, e o maluco da cidade chama-se Pinga.
Em outro, 33 pessoas, prefeito Silas, mulher Quitéria, maluco Jerônimo, e assim
vai.
A abertura do
primeiro ato provoca no espectador desejo de entrar no espírito circense, de consumir,
nos intervalos, paçoca, geladinho, enternecer-se com as músicas dos Irmãos Lorotta
(Álamo Facó e Hossen Minussi) que são “protegidos” por uma placa com os
dizeres: “Não atire nos músicos”. Depois
de um dos artistas do circo levantar peso, entram em cena os palhaços Puro Sangue e Pangaré, as pessoas acham graça do espetáculo e, também, Lola dança
com uma espada nas mãos. A menina Guilhermina, interpretada por Larissa Manoela,
que também faz parte do grupo, observa atentamente atrás dos bastidores. Aliás,
ela sempre está assistindo os entretenimentos, na realidade é a testemunha
ocular ao longo do filme; percebe que Lola guarda dinheiro escondido do Sr. Valdemar,
quando o ajudava a fazer pagamentos e/ou dividir o dinheiro decorrente das
apresentações aos componentes do circo; presta atenção em Benjamim, quando percebe
que está preocupado; sua mãe protege-a quando sente que ela está pensativa e
inclusive lhe diz da importância de orar para São Filomeno, santo protetor dos
músicos, dos comediantes e dos palhaços.
A preocupação
ronda o dia a dia de Benjamin, de modo que o pai lhe pergunta: “Resolveu as
coisas?”. Benjamim depara-se com artista circense que quer pintar cabelo de
louro para dar “sacudidas nas coisas” e dizer que é ‘russo’; outro querendo
remédio porque está com dor de cabeça; a senhora Zaira (Teuda Bara) querendo um
sutiã novo, porque o dela rasgou em cena (algo que vai ser preocupação de
Benjamim que pergunta à esposa do prefeito e, depois, à atriz convidada Fabiana
Karla se elas tinham sutiã velho para lhe dar); os Irmãos Lorotta solicitam-lhe
acerto de conta. Pensativo, Benjamim desabafa com a senhora Zaira: “Essa correria. Espero as coisas acalmarem,
daí resolvo tudo”, ao que a senhora lhe responde: “Você está precisando dormir,
Benja”.
Benjamim somente
tem visões de ventilador à sua frente, e, de repente, é abordado por uma das
espectadoras do circo, que gostou muito do espetáculo, que se chama Ana e que
trabalha em Aldo Autopeças, em Passos, caso um dia ele resolva ir lá. O
prefeito também se aproxima dele e lhe pergunta a respeito de sua graça. Ele responde que anda meio sem
graça, mas que o nome dele é Benjamim. Convida-o, juntamente, com o restante do
grupo, para um jantar na casa dele. Lá um ventilador faz-se, de fato, presente.
O prefeito pergunta a Benjamim, se seu filho, que nasceu para ser artista,
podia participar de um ato no circo recitando um poema feito por ele mesmo. Mas,
para surpresa de todos, durante o espetáculo, devido à falta de experiência e
do nervosismo do menino, fica atrapalhado e diz que é filho do prefeito, quando
indagado acerca do seu papel. A
questão da identidade aparece, aliás, o tema central do filme é a busca da
identidade.
Compreendemos,
também, que a troca de favores está presente no filme. O prefeito com a mulher
não pagam ingresso, mas convidam a comunidade circense para jantar na casa
deles, bem como Nancy, cabeleireira, atende componentes do grupo no seu salão
de beleza por cortesia. Do mesmo modo, o
suborno, pois, no momento que o fiscal comprova que o circo não tinha alvará de
funcionamento, indaga a Benjamim se ele pode arrumar alguns ingressos; quando
vão à delegacia para prestarem depoimento,
o delegado Justo, que estava mais preocupado com seu gato Lincoln do que com a
mulher Cleide, solicita dinheiro por conta da pretensa recompensa. Ainda, a tapeação quando o rapaz de bicicleta
vende um mapa da Venezuela para orientá-los na procura da ‘Ofissina’ dos “irmãos
gêmeos” Papagaio – Deto e Beto – no conserto do carro. Em um primeiro momento,
chama-nos a atenção o fato de os irmãos viverem na mesma casa e não se falaram
por mais de 15 anos, todavia, Oliveira (2014, p. 02), em Somos todos “palhaço” do circo que construímos, traz algo que não
tínhamos percebido:
A
solidão é apresentada em uma cena de comédia que pode passar despercebido, na
oficina dos “irmãos gêmeos” Beto e Deco, não é difícil de ver o que o retiro
fez com eles, não sabemos quem criou quem, pois perdidos na imensidão da distância
e na solidão do sertão, a única saída foi criar um amigo imaginário para assim
superar o isolamento ali existente.
Percebemos,
também, serem os problemas de droga e de cachaça recorrentes na região. Não por
acaso, os espetáculos abordam questões da existência humana, como Puro Sangue no picadeiro advertir sobre
os malefícios da cachaça, dizer sobre a existência de Deus. Ainda, o filme é um
bom meio para descrever os valores culturais, a exemplo do sonho que um deles
tem com a cabra e que lhe provoca sofrimento dado o conflito que se estabelece,
e comprovado pela compulsão à repetição do relato; a cultura asséptica no fato
de Chico Mourão indagar a Benjamim se ele era seu amigo, pois alguém havia lhe
dito que não cheirava bem; a questão da infidelidade mostrada no fato de um
deles que fazia parte da trupe mexer com a mulher do outro no Bar do Tim. Como
esclarece Horkheimer (2000, p. 119) em Eclipse da razão:
[...] se não existe outra norma além do status
quo, se toda a esperança de felicidade que a razão pode oferecer é
preservar o existente tal como ele é e mesmo aumentar suas pressões, o impulso mimético
jamais pode ser verdadeiramente superado. Os homens retornam a esse impulso de
uma forma regressiva e distorcida (GRIFO DO AUTOR).
Essa citação
evidencia nossa limitação diante da realidade, conduzindo-nos a pensar sobre o
nosso cotidiano, isto é, não se trata de algo fácil termos atitudes pensadas e
é muito mais fácil agirmos por meio de reflexos, ainda mais quando necessitamos
de esclarecimento quer vivamos em grandes centros ou em pequenas cidades.
Tendo em vista o
caráter da cultura nômade, itinerante – pessoas que não têm uma habitação fixa,
que vivem constantemente mudando de lugar, o que demanda pensarem no “outro
lugar” –, outra passagem significativa foi quando, no trajeto para outra
cidade, pararam em um Recanto com bar.
Enquanto Benjamim observa Guilhermina brincando de jogar bola com os pais,
Valdemar conversa com um rapaz (Jackson Antunes) que toca violão, que lhe
pergunta se ele era o dono do circo. Ele disse que é bom ser dono, que tinha
uma fábrica de tecido com seu pai, mas que venderam a loja para cultivarem
arroz; como não entendiam disso, perderam tudo. Conclui que hoje está melhor e
que “cada um deve fazer o que sabe fazer. O gato bebe leite, o rato come queijo
e ele toca seu trabalho”. Depois disso, Sr. Valdemar fica pensativo e olha para
o filho. Algo que não pode ser desconsiderado é que a transmissão do
conhecimento de pai para filho na comunidade circense acontece e intervém na
relação de trabalho que se institui.
Benjamim demonstra
distração em vários momentos, ao montar o circo, não presta atenção no sentido
do vento, bem como insatisfação, ao dizer ao pai quando toca acordeão e ele
violão: “Pai, acho que não estou dando conta”. Decide comprar um ventilador,
mas para parcelar, necessita ter RG, CIC, comprovante de residência, de modo
que não pode adquirir o produto.
Em Montes
Claros, a questão de “não vai enterrar o morto?” aparece. Sousa (2013), em sua
dissertação de mestrado denominada Retrato
de picadeiros: memórias de uma trajetória de circo na Amazônia paraense, esclarece
que no Circo a verbalização do pensamento, da palavra, implica poder. Palavras são para o indivíduo circense
instrumentos de comunicação pelos quais se revela herança, identidade e escolha
de vida, de modo que reconta um trecho do referido filme:
A
pergunta é: Que negócio é esse de enterrar defunto?”– questiona bastante
chateado o delegado Justo, interpretado por Moacyr Franco, em uma das mais
recentes produções de Selton Mello, O Palhaço. “Não é defunto não doutor. É coisa de circo. É o morto que nós
fala”– diz João Lorota (Álamo Facó). “É isso doutor”– reforça Chico Lorota
(Hossen Minussi) que emenda a fala explicando: “É quando a gente encontra um
terreno arenoso, é suspeito, né. Aí a gente tem que cravar umas estaca pra
poder prender a lona”. “E essas estacas
nós chama de mortos...”, contribui prontamente João Lorota quem conclui com
cara de quem jura inocência dizendo: “é isso...” (O Palhaço, Selton Melo, 2011, apud SOUSA, 2013, p. 39).
Nesse sentido,
depreendemos que, o que segura, paralisa, é a morte; o ventilador é a vida, que
movimenta o que está sem circulação. Sousa (2013) acrescenta que as estacas
possuem tal nome porque permanecem enterradas de modo profundo no solo onde
acampa o circo. O não travamento das cordas, que junto com os moitões –
roldanas de ferro com ganchos – auxiliam a montagem da estrutura do circo, provoca
o desabamento da lona em caso de grande agitação ou tempestade. Por isso é que
o pai de Benjamim lhe adverte por conta de sua displicência, pois, quando é
perguntado se não vai enterrar o morto naquele suspeito terreno, responde que entendeu
que não necessitava, de modo que Sr. Valdemar reage com indignação e solicita
que seja refeito o trabalho. Os trabalhadores, ao reclamarem no Bar do Tim, a
viva voz, que aquele morto tinha sido enterrado entre todos, foram mal
interpretados e tiveram que prestar contas do defunto circense ao referido
delegado.
Ao conversar com
a personagem interpretada por Fabiana Karla enquanto os outros estavam no bar,
Benjamim indagou-lhe onde ficava Passos e, ao lhe perguntar o que ele fazia, ele
lhe disse que ele era Palhaço, que fazia as pessoas rirem e indaga: “mas quem
vai me fazer rir?” Compreedemos ser importante tal cena, pois, mais à frente, Benjamim
vai estar reunido com seu chefe (Jorge Loredo) e colegas de trabalho, todos
escutando e rindo das piadas, o que lhe propicia pensar acerca de sua
identidade e do seu papel no circo. Pois, como afirma Crochík (2006, p. 66), em Preconceito, indivíduo e cultura: a identidade “[...] é a síntese
daquilo que se repete e daquilo que luta contra a repetição, ou daquilo que
tenta não se repetir e o que luta pela repetição”. Isto é:
[...] a identidade individual é dada por
elementos visíveis e invisíveis, constantes e imprevisíveis, sociais e
individuais, manifestos e ocultos, universais e particulares, permanente e em
mutação. Não considerar os aspectos permanentes, embora não imutáveis, é
desconsiderar a memória, a experiência acumulada refletida ou não, ou seja, o
que o indivíduo reconhece como próprio e particular. Ele não só é essas
características, como as possui, são suas propriedades privadas e, é claro,
foram produzidas ou adquiridas por doação social: não o sexo, a classe social,
a cor da pele, mas as considerações e os papéis atribuídos a ele. Não
considerar a possibilidade de mudança, ou aquilo que lhe é oculto, por sua vez,
é julgar que o indivíduo seja incapaz de ser outra coisa, além daquilo que se
espera dele (CROCHÍK, 2006, p. 66).
Portanto, existem
aspectos da relação do indivíduo com a cultura e com a sociedade que fogem do
nosso controle, mas por meio da experiência, do conhecimento e da reflexão, é
possível mudarmos de atitudes. Daí ser explicável o duplo movimento de
Banjamim, querer mudar e querer ficar.
Outra parte do
filme que, no nosso entendimento, provocou compreensão logopática, isto é,
afetiva e racional ao mesmo tempo, nos termos de Cabrera (2006), é quando,
depois de uma apresentação, em que Pangaré
não consegue devidamente atuar, seu pai, Sr. Valdemar, observa o filho ir para
o acampamento. O pai está triste, pensativo, tira o nariz de palhaço e se
dirige a Benjamim que está deitado e lhe diz: “Filho, na vida a gente tem que
fazer o que sabe fazer. O gato bebe leite, o rato come queijo, eu sou palhaço.
E você?”. Com efeito, Sr. Valdemar introjetou a experiência do personagem
representado por Jackson Antunes como algo bom e, por conseguinte, sua
percepção do mundo também sofreu modificações.
Não é fortuito
que Benjamim decide seguir seu próprio caminho, na despedida, todos demonstram
tristeza, mas não dizem nada; Guilhermina permanece, acompanhando-o com o
olhar, com as duas mãos olhando no vidro do carro. Assim, nessa passagem, como
em outras, percebemos o encadeamento de relações afetivas, de crises e de
superações presentes na comunidade circense.
Sr. Valdemar, junto com Lola, no carro, diz a ela que vai precisar do
dinheiro. Ela pergunta: “que dinheiro?”. Ela decide entregar-lhe o dinheiro que
tinha retirado escondido dele, mas, antes de ela seguir seu próprio caminho,
ele, com sua peculiar sensibilidade, lhe devolve o dinheiro e diz que ela vai
precisar. Guilhermina observa o ato.
De carona em uma
moto, Benjamim chega a Passos, dirige-se para um hotel, observa cenas como
casal se beijando, homem lendo jornal, que eram cenas parecidas como as que
ocorriam quando estava no circo, o que evidencia que a comunidade circense, com
seu caráter itinerante, faz parte de uma cultura abrangente. Ou, o mundo fora
do circo passou a ser visto por Benjamim como verdadeiramente é. Vai à procura
de emprego, mas não pode se candidatar a ser atendente porque não tem RG, CPF e
comprovante de residência, de modo que providencia a identidade mediante sua
certidão de nascimento. Em outro momento, ele dirige-se até Aldo Autopeças e,
para sua decepção, Ana, a moça que tinha conhecido em Santa Rita de Ibitipoca vai se casar com o próprio Aldo (Danton
Mello), proprietário. Compra, então, o desejado ventilador. De volta ao circo,
com expressão de contentamento, anda de ônibus, na carroceria de um caminhão, e
ao flertar com uma garota, reconhece, mais uma vez, que o que sabe fazer mesmo
é ser palhaço.
Outra cena impactante foi o momento que Puro Sangue está contracenado com a senhora Zaira, que diz: “Desgraçado, esse
menino é filho seu”. Ele responde: “Que papai coisa alguma, quem tem filho
grande é elefante”. Como assistimos, Benjamim aparece e diz: “O gato bebe
leite, o rato come queijo e eu sou palhaço”. Puro Sangue e/ou o pai, e Pangaré e/ou o filho, tocam-se no nariz e não precisam de palavras naquele
momento. Como afirma Sousa (2013, p. 175), “[...] quem bebeu água da lona nunca
mais esquece!”; trata-se de um ditado comum entre os circenses para ilustrar sobre
a paixão entranhada nos artistas de circo de lona que dificilmente se habituam
a outra vida que não seja a do circo.
Podemos dizer
que o filme emprega simbolismos, gestos, olhares, silêncios, e, por meio deles,
o processo da identidade vai sendo construído e desvelado, a exemplo de Lola,
ao comer maçã e ser cortejada, e passar esmalte nas unhas; Guilhermina com
bonecas, vestida de princesa, com uma sombrinha; a infidelidade em mensagens
subliminares como no quadro do “chifrudo” (na casa do prefeito); Benjamin, ao
tentar se encontrar, diante do espelho, e a piscadela que ele deu à moça da
plateia. Também, a participação de personagens como Jorge Loredo e Moacyr
Franco, entre outros, e a música de “dor de cotovelo” no final.
O circo
representa a separação entre a vida real e a vida fictícia, considerando os
papéis como uma forma de comunicação, de criação de laços sociais. Mas, diante da
própria existência, da condição humana e das experiências de seu cotidiano,
como é difícil imaginar e representar – e a representação é mimesis, imitação –
para uma plateia de carne e osso, tal
como expressa Benjamim: “Acende a luz para ver essa gente bonita; apaga rápido”;
ao mesmo tempo, como é bom sonhar e representar. Como refletimos em outro
trabalho:
O
novo não tem entrada - as coisas parecem repetir-se, não têm elementos novos, o
que fortalece a realidade estabelecida, pois a tônica recai na mesmice diante
da impotência do indivíduo frente à totalidade. O indivíduo tende, com isso, a
submeter-se ao mais arcaico dos meios biológicos de subsistência - o mimetismo.
É fato irrefutável que o processo de aprendizagem da criança vai desde o
“impulso mimético” até a apreensão da “imitação consciente” (PEDROSSIAN,
2008, p. 43).
Assim,
podemos aproximar os conceitos de mimese e de dor, de modo que a simples
repetição das cenas provavelmente não provoca contentamento nos artistas
circenses. Ainda que haja piadas no
filme, a essência não está no riso, mas no humor. Como pontua Freud (1974), no
escrito O humor, de
1927, o humor tem não somente algo de
libertador, como também possui algo de elevação e de grandeza na medida que o
ego se abdica de sofrer, de ser angustiado pelas provocações ou traumas da
realidade. Do mesmo modo que o humor, para Horkheimer e Adorno (1985, p. 78), na
Dialética do esclarecimento, escrito
de 1947: “Se o riso é até hoje o sinal da violência, o
prorrompimento de uma natureza cega e insensível, ele não deixa de conter o
elemento contrário: com o riso, a natureza cega toma consciência de si mesma
enquanto tal e se priva assim da violência destruidora”,
e, assim, sinalizam
para além do endurecimento interior e da servidão.
Outro conceito suscitado
no filme é o da renovação, da esperança. Se Lola partiu para seguir outro
caminho que não mais do circo, Guilhermina – a menina protegida por São
Filomeno – cresceu e passou a representar a promessa, e, como pontua Adorno (1993,
p. 85) em Minima moralia, escrito de
1947:
[...] a esperança - na medida em que se arranca da
realidade ao negá-la - é a única forma na qual a verdade se manifesta. Sem
esperança seria quase impossível pensar a ideia da verdade, e a inverdade
capital é fazer passar por verdade a existência reconhecida como má,
simplesmente porque ela foi reconhecida.
Não por acaso, o
ventilador carregado de significados e presente em toda a trama evidencia que
somos seres marcados pela falta, pelo desamparo e, ainda, contém os bons ventos
da renovação. Como afirma Sousa (2013, p. 50):
Para Michel Maffesoli [em El
Nomadismo: vagabundeos
iniciáticos] este vento é “o espírito que sopra onde quer”, e em
seu caminho atravessa fronteiras, é fecundado pelas diversas influências com as
quais se cruza e fecunda por sua vez aqueles que se entregam ao dinamismo do
seu impulso”, e ainda, dirá que “violento ou sussurrante, o vento é a metáfora
por excelência da irrefreável circulação. Fonte de respiração e inspiração.
Leva consigo os germes fecundadores”. Dando-nos em poucas palavras a garantia
da renovação constante por intermédio do movimento. E - não só dela, senão
também da inovação pela gestação fruto de cruzamentos, encontros e trocas; da
inspiração que impulsiona novos caminhos e da vivacidade capaz de resistir a
tudo o que tende a ficar intumescido. A intensa circulação que Maffesoli trata
é a cultura nômade, que assim como o vento não repara em barreiras ilusórias
construídas para sustentar o estável, o social-estável ou ainda o establishment.
Antes (se necessário) transforma-se em tormenta que arrasta tudo a seu passo e
chega a explodir impérios que são aparentemente sólidos. A cultura nômade
desestabiliza. Independente de camadas sociais, obriga todos a pensar no “outro
lugar”.
O caráter de ser
nômade implica também mudanças, ainda que as coisas não modifiquem; como já
dizemos, nos diversos lugares aonde o circo vai, há repetição de perguntas
feitas que se relacionam com a autoconservação da comunidade circense, e,
igualmente, as cenas já observadas por Benjamim no circo repetem-se quando ele
vai embora, de sorte que isso pode ser explicado pela crítica dos
frankfurtianos no mundo atual: onde quer que vamos, tudo é igual; o ventilador
talvez permita o movimento, mas ele é objeto construído pelos homens e talvez
os traga para o mesmo lugar, ou seja, seu movimento pode também ser ilusório.
Mas, como
sinaliza Marcuse (1977, p. 39) em A dimensão estética: “A
arte não pode mudar o mundo, mas pode contribuir para a mudança da consciência
e impulsos dos homens e mulheres, que poderiam mudar o mundo”, isto é,
possibilita uma compreensão da realidade.
Muito obrigada.
REFERÊNCIAS
ADORNO, Theodor W. Minima
moralia: reflexões a partir da vida danificada (1947). Trad. Luiz Eduardo
Bicca. 2 ed. São Paulo: Ática, 1993.
CABRERA, Julio. O cinema pensa: uma introdução à
filosofia através dos filmes. Trad. Ryta Vinagre. Rio de Janeiro: Rocco, 2006.
CROCHÍK, José Leon. Preconceito, indivíduo e cultura. 3 ed.
São Paulo: Casa do Psicólogo, 2006.
FREUD, Sigmund. O humor
(1927). In. Edição Standard Brasileira
das Obras Psicológicas Completas de
Sigmund Freud, v. XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1974, p. 187-194.
HORKHEIMER, Max. e ADORNO,
Theodor W. Dialética do
esclarecimento: fragmentos filosóficos (1947). Trad. Guido Antonio de
Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
HORKHEIMER, Max. Eclipse
da razão (1946). São Paulo: Centauro, 2000.
MARCUSE, Herbert. A
dimensão estética (1977). Trad. Maria Elisabete Costa. Revisor da tradução:
João Tiago Proença. Portugal: Edições 70, 1977.
MELO, Selton. Palhaço. Duração: 90min. Brasil: Imagem Filmes, 2011.
OLIVEIRA, Sidnei. Somos todos “palhaço”
do circo que construímos. O palhaço - Selton Melo. A representação da
felicidade que não alcançamos. Disponível em: files.violaoliveira.com/200000864-d3da8d4d48/O%20Palhaço.pdf. Acesso em 01 junho 2014.
PEDROSSIAN, Dulce Regina dos Santos. A racionalidade tecnológica, o narcisismo e
a melancolia. São Paulo: Roca, 2008.
SOUSA, María Virginia Abasto de. Retrato
de picadeiros: memórias de uma trajetória de circo na Amazônia paraense. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal
do Pará, Instituto de Ciências da Arte,
Programa de Pós-graduação em Artes, 2013.